sexta-feira, 5 de outubro de 2012

haiku





sombra  benta nós :
bosque limo cachorro
atrás outono


haiku de maria andersen

os pés crescem para ruas

jogo capim com os olhos
enquanto a noite se  deita na voz
onde os pés descalços crescem para ruas
na língua solar  das borboletas


maria andersen

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

durmo no dorso das rosas

 




 
 
 
 
voo parada na distância de todos os princípios
pronuncio bicicletas carregadas de tempo
durmo no dorso das rosas
pego a lucidez aos ombros e trago-a ao poema
onde a teologia é plebe

maria andersen

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

madruga-me a sede







ás vezes madruga-me a sede
subo menina à cama
enquanto a tua voz canta
trago da tua pele sinais
pássaros em gomos declarando sol
acabou o café
o frio regressa ao cair das horas
entardece
as palavras são crepúsculo
à hora em que toca o sino
guardamos o som da água
na homilia do cinema 
o pátio é de pedra
onde a lua nos consola a boca
o mel renasce-me nos poros
onde a grande tarefa é respirar desertos
adornados de usuras onde só tu me sabes
" a noite outrora não tinha céu
o dia não tinha chão"
agora
o amor é o catre das artérias
palpitando no sexo
samba em que me cedo
cravo na terra mordendo cego
instante a gemer entre paredes
aqui - violo no orgasmo a paz
roubo o silêncio das noites
com os olhos abertos para dentro
o alfabeto dos homens na água das mulheres
o limo a contornar a nuca
a cidade no bico dos seios embalsamada
o verão na luxuria dos livros
e o tempo a fio no que dizes
eu
digo-te coisas naturais
tu fazes escapulir peixes em cardumes
na rua  dobrada no vapor da boca
onde eu chego
mesmo quando parto


pintura  e poema maria andersen

quarta-feira, 26 de setembro de 2012



a noite é uma demanda de sombra
uma concha dentro das mãos
como um acidente democrático
ao lado da vigília

a boca - o espanto - a esmeralda
o abismo do pensamento
a criar orientes junto ao teu rosto
onde a manhã "corre como um mendigo
sobre um cais de mármore"

na filigrana da chuva eu danço
com olhos enormes onde o amor é proa
candeia bordada de girassóis   por dentro da carne

uma goiaba - delírio na mudez do verbo
a  voz  - toda nascimentos


pintura e poema de maria andersen

domingo, 23 de setembro de 2012

                        

teço degraus na chuva -
o tecto é verde
o teu sono um campo de goivos
onde danço

grito-me por dentro
onde os ouvidos escutam

desenhei-te na parede junto aos colares
onde o quarto é imenso
pela noite onde o corpo é quartzo

a janela céu pintado na pupila
onde o relâmpago é "rosa de água"




pintura e poema de maria andersen


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

cantemos
as veias jorram nas árvores
nas raízes  o sol arde a pique
e os que leêm não entendem
vivo noutras vozes
porque o destino não me cabe nas mãos
tenho o fim por inimigo
as letras como estradas longas
de onde extraio humanidade

maria andersen

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

 
 
 
 
 
é o lustre das palavras a exausta navegação -
assim esta calma melopeia
e o caminho de vento e giz à minha frente
 
 
maria andersen
(obra - Picasso)


meus seios nus
que aos teus olhos regressam
 
 
(poema - maria andersen)

? ser ou não ser ?

 
(obra - Júlio Pomar)


são tantos os que não sabem
são tantos os que não bebem
mãos de rotundas vazias
olhos dentro das fronteiras
tantas as cores onde o sonho a medo se esbate
há a queda, o riso
há a hora, o tempo desmedido
há o sol a pique
a rua sem saída
há os livros vagos entre os dedos
as palavras de que não se sabe o sentido
há as horas
os gestos
as vozes
uma longa avenida de
distracções que rasgam o céu
há bocejos
cansaço
há fome
há partidas
um mundo dentro do nada
há o espanto
uns olhos que me ficam por dentro
e tu que nem me  sabes
tão  há porta de ti
há a guarda
a linha
o horizonte
 
há a cela
o ser
a vontade
a piedade
há o preto     o pranto      o jogo
até onde a poesia desce
há a silva     a selva
os papeis
a conversa torpe  da ânsia
o zumbido que reclama
o contracto  do que se ignora
o porto sem abrigo que ejacula
abismos  entre os olhos
corrupção - as senhas furadas nos risos
meias luas frias - exactamente ao meio dia
desdobráveis oxigenados
informações nas esquinas
joanas nos capitéis do arame
avé marias nas bocas dos mudos
anéis largos a travar as línguas
surdez a quanto me obrigas
moral a que te prendes
na ortodoxia das preces sem pressa
faca onde me corto
com holofotes no garfo
catedral do desespero
telhas de vidro sujas e sem barcos a assalto
engravatados negros de alcatrão
a tresandar a podridão
no avesso de mim
um parque esgotado de babilónias
e mil agulhas a coser buracos
no nailon dos dias
sou proletária neste campo onde me semeio
e rego com anti leis
os pedaços em que me reparto
a morte saiu ao corpo
a mente tece o jazigo
onde se dorme tão perto da vida
aqui ensaio o enigma
 
?"ser ou  não ser" ?
 
 ( poema -  maria andersen)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

voragem a boca dentro da rosa



é o vidro meu amor
é a toalha
é o recorte do jornal
a noticia que ninguém lê
é a cadeira
a corda tensa
o chocolate negro
o nó que a tua boca aperta
é a jarra no lugar vazio
é o pão que fumega
é o sol da tarde ferindo
é o touro manuscrito
é o espectro o alicerce
é o relógio e o cordeiro
é o amor e o limão no mostrador
é a balança e a fé
é o tempo é o mapa
é o riso e a pele
é o mar é a noite
o sentido de dentro
a labareda nos membros
a boca dentro da rosa
a chuva a cair toda por dentro

meu amor


maria andersen

sábado, 14 de julho de 2012

correm por aí noticias
onde as mãos são corpos
o tacto olhos

podiam soletrar dicionários
à boca das cerejas
é sábado e o vento dança nas folhas
a inquisição está nos verbos
onde desce a maré
estou no quarto crescente de mim a domar renas nos pensamentos
sempre quis andar de carrocel
junto ao rio onde as canoas cortam as águas

estou descalça
à proa da viagem
e tenho discípulos à porta


fico no verde entre os teus olhos
o bom samaritano  caí-me nas vogais
dobrando segredos
nos cabelos dos poetas

o caminho nunca se acaba de abrir junto à fronteira
a garganta é rosa aberta sobre a música
onde te abraço

se os anjos fossem menos breves
podiam estatelar-se junto às estrelas a ver literatura

a esta hora nascem-me na boca romãs
as perdizes estão todas à janela
do sonho a quebrar aís

aqui tudo me diz sinos
tudo me diz sopro
tudo me diz profano
tudo me diz tesoura
na "ricotta"

e enfim:
tudo me é descanso


maria andersen

sexta-feira, 13 de julho de 2012

aqui descem as pálpebras como jangadas



se aqui descem as pálpebras como jangadas
as aves descem às horas pelas janelas
as bicicletas passeiam pelas águas onde a língua é ferocidade do mar

onde se apregoam todas as danças
o tacto no sol da clave
o guiso no riso da criança

o gato enrolado na sua estranha distracção
a porta do  livro por onde  vou
a lua como bolha de ar dentro dos amantes
a madrepérola esquecida na calçada
as romãs na quinta dinastia
o moinho onde as rosas nascem
a terra como veia aberta
a fuligem das rodas entre os dedos
as silvas na orla do vento
o atestado de decadência nas laranjas
a droga das palavras entre os lábios
os pensamentos como novelo
no  deserto cheio de emaranhados
a pulga da silaba no objecto do desejo
a lupa à vista de nada  



domingo, 1 de julho de 2012




são estas horas exactas 

estou no vértice do limiar só para poder ver)(te
as montanhas olham-me mudas
como os índios habitam os dias até ao fundo
atravessando uma escada sagrada e geométrica
enquanto as horas sobem à encarnação da luz
tão súbitas no sol que há em ti
assim  perpassam o templo como uma esfinge

a mãe sempre me ignorou de cores
pariu um desenho que lhe bateu à porta
na conjugação dos elementos
formas quebradas de um só golpe
que nos fazem cantar os verbos mais finitos
" a gramática infame do medo"
a espuma e o riso dos jogos de amor
"os filhos da madrugada"
tudo se deita não para dormir  nem para morrer
mas para se fazer poesia noutro ser
eu deito-me não para desistir mas para levantar-me 
num canto erecto com a ternura possessa de abismos
e a entrega absoluta henry miller
na loucura acesa em que me crio
nesta caverna de lençóis habitados de pássaros
com lições desaprendidas - como unicórnios 
a beber água nos canos da pistola

? que sonhos nos mudam de lugar
há murmurios que me falam onde te procuro
eu amo-te
no obliquo pássaro do ombro
alcatrão talvez em que rasgamos coisas antigas
braceletes caídas no choro do rio
a roubar o fogo às manhãs em que regressamos
com olhos marinheiros

o poema pode ser isto
um íntimo vento que nos passa por dentro a lançar pedras

assim me incompleto de ser o que não sou 

aqui

quinta-feira, 21 de junho de 2012

dou música aos cantos

partir por entre as horas a caminho de qualquer coisa e ficar
há uma legenda ao canto, um sono casual, uma boca fechada e divagando à meia folha
em que escrevo    se olho vejo à janela o que existe junto ao lume
assim eu dou música aos cantos e tu danças na estrada branca sobre uma batalha de gestos
os dias nunca foram iguais  -  criamos neles tambores febris, parques onde os plátanos
 se afundam até às águas e outras pequenas distrações quotidianas -
andas descalço nas palavras neste meio tempo das letras e tens nas mãos labirintos que te cabem nos olhos e entre nós dá-se a mesma intranquilidade bíblica.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

tudo nos é caro e raro

tudo é o que dizes – divisão
uma divisão em que se somam pés
uma árvore que cresce para dentro do teu som
uma mão que te adormece
Ariadne indica-te o rumo mas não vês
a rosa desfolha-se no caminho
o perfume colhe-se na chuva
que adormece nas veias
tudo nos é caro e raro
 e de tudo somos discípulos
- ladra um cão lá fora como plateia sonora
tens dedos de prata abismados nas cordas
o vinho na garganta a dar-te gás
e a estreita dimensão que por dentro te alarga
vem de outros tempos tudo o que és
tens “tchi-cum” na harmonia
- eu sorvo-me no alperce que como
e raia-me de repente o sol nos olhos
mas tu não vês
estou na ante – entrada de mim

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Uma semente riso cantando anos à janela


meticulosamente o perfume da matemática
a bicicleta linear
o sapato no anel da tarde
o móvel nas tuas mãos
e um frio finito
um olhar sem intervalos
um retrato polindo o ar
um caracol poeta
um fósforo à mesa
um buraco na sombra
uma boca na fuga
uma limalha no sono
uma manta no porão
um riso coberto de estima
o chão trabalhando a vida
uma capa suada
um sabor tecendo o nome
 um gesto dizendo a cor
os punhos pousando nas letras
um escriba no leilão
uma ilusão no trampolim
uma biblioteca surda
um pacote de mistérios ao fim da tarde
um lucro para o lixo
um desvario epigramático
uma arca a dobrar camisas
uma cabeça descart-áve( l )
uma rosa  em deleite
luz à boca da fome
um tijolo na paz dos contos
um zumbido de bicho azul
uma semente de riso
cantando anos à janela
e curvas no oceano 
pátria de cobiças extensas como fios
uma esmeralda na preguiça
uma lua a meio bordo
uma rua concertada
uma mão selva cantada
uma imagem distraída
um filme da minha vida




segunda-feira, 21 de maio de 2012

qualquer coisa de tempo pousado em mim

gatos folhas deitados no dia
tardes abertas para dentro
ópio do tempo
no esmero das cidades invadidas
bancos de solidão à sombra
chuva de humanidade a remendar palavras
noite que o poema aquece entre as mãos
olhos guardados na fimbria de uma qualquer flor


maria andersen

domingo, 20 de maio de 2012

atravesso vozes como ruas


tenho vinho de rosas à porta
damascos maduros
quase gente
nuvens discípulas como casas
no fundo dos meus olhos
atravesso vozes como ruas
palavras como bosques inóspitos
e sentidos que invoco grávidos
como mães
de crianças ao colo


maria  andersen

sábado, 31 de março de 2012

OS AMANTES




        Tradução de José Jeronymo Rivera

" Quem os vê andar pela cidade
 se todos estão cegos?
 Eles se tomam as mãos: algo fala
 entre seus dedos, línguas doces
 lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
 e acima a noite está cheia de olhos.

 São os amantes, sua ilha flutua à deriva
 rumo a mortes na relva, rumo a portos
 que se abrem nos lençóis.
 Tudo se desordena por entre eles,
 tudo encontra seu signo escamoteado;
 porém eles nem mesmo sabem
 que enquanto rodam em sua amarga arena
 há uma pausa na criação do nada
 o tigre é um jardim que brinca.

 Amanhece nos caminhões de lixo,
 começam a sair os cegos,
 o ministério abre suas portas.
 Os amantes cansados se fitam e se tocam
 uma vez mais antes de haurir o dia.

 Já estão vestidos, já se vão pela rua.
 E só então,
 quando estão mortos, quando estão vestidos,
 é que a cidade os recupera hipócrita
 e lhes impõe os seus deveres quotidianos."
                                                                         Julio Cortázar